Conto: A Figura
Enquanto vos escrevo, sou observado.
Está ali, ao canto do quarto, uma figura. Uma sombra. Tem silhueta de pessoa, mas não parece ser humano. A figura é escura e não lhe consigo distinguir os traços.
Já ali está há mais de meia hora. Devia sentir-me assustado, mas não me sinto. Devia ter receio, mas não tenho. Enquanto olho para a figura tenho a sensação que ela me olha de volta. Será mesmo real? Não me ocorre fugir ou atacar ou falar ou gritar, apenas tenho o impulso de escrever e é isso que faço.
E estranho este impulso. Há semanas que não consigo escrever uma única linha. Sento-me em frente ao portátil, pouso os dedos sobre as teclas e tento dar coerência aos meus pensamentos. Mas nada acontece. Não consigo juntar sequer duas palavras com sentido e os dedos não se mexem. Sinto que não tenho nada de importante para dizer, nenhuma mensagem válida para passar, nenhuma inspiração para libertar num texto.
Mas agora que sinto a presença desta figura, a única coisa que me ocorre fazer é escrever. Ainda que uma parte de mim continue a achar que isto não é real, o resto começa a acreditar que não se trata de imaginação.
Um ponto de luz! Surgiu um ponto de luz na figura. Uma luz quente sem transmitir qualquer calor. No entanto, é uma luz tão pouco abrangente que não revela muito do meu observador. Será que tenho estado a imaginar esta figura negra? E agora imagino este ponto de luz? A luz começa a desvanecer. Contudo eu não estava a pensar no enfraquecimento da luz. Na minha mente corria o desejo de que essa luz se intensificasse. Se fosse imaginação ela brilharia mais, não menos.
Nunca escrevi deste modo. Em tempo real. O meu cérebro está a processar a informação e os meus dedos estão a concretizá-la no portátil com uma destreza incrível, como se fosse um pianista a tocar Rachmaninoff. Não sinto nenhum bloqueio. Escrevo a cru e a nu aquilo que penso.
Aquele ponto de luz volta a brilhar, mas desta vez com um pouco mais de intensidade e a esse juntam-se mais dois pontos de luz. Consigo vislumbrar mais alguns traços da silhueta. É uma pessoa. Não sei se homem ou mulher. Mas parece ter braços e pernas como eu. Não iguais a mim, mas como eu. Não o reconheço. Se fosse imaginação minha não seria esta figura mais familiar? Não, não pode ser imaginação. Eu não estou louco. Eu não sou louco!
Estão a surgir mais pontos de luz. É uma pessoa sim. E eu não a reconheço. É um homem. Não, uma mulher. Não. Não lhe sei distinguir o género. Que estranho!
Mas o que me está a agitar neste momento não é o sexo da figura. É aquela luz. Aquela luz não emana da figura. Tenho a certeza de que aquela luz não lhe é própria. Aquela luz não é sua. Estou a examinar aquela luz, aqui à distância, pois ainda não tenho coragem de me aproximar. Já vos escrevi que é quente sem qualquer calor. Mas esqueci de vos dizer que é uma luz sem cor. Quero dizer, tem uma cor, mas não sei que cor é. Não é branco, não é amarelo, não é escura nem clara. Eu não posso estar a imaginar uma luz que não conheço certo? Não sei o que se está a passar, mas algo se está a passar e eu não estou maluco. Não estou a imaginar. Eu acredito que aquela figura está aqui, no meu quarto, a poucos metros de mim.
Estou a escrever a uma velocidade que não me é normal. Estou a vomitar letras e palavras pelos dedos e não me consigo controlar. Sinto as palavras na ponta dos dedos. Os cabelos na minha nuca estão eriçados. Sinto um arrepio. Nem frio, nem quente.
A luz não se intensifica mais. Não consigo perceber que figura é aquela. Não consigo desviar o olhar. Não quero parar de escrever, mas sinto que as próximas palavras depende de um mais profundo conhecimento daquela figura que se tornou na minha musa deste momento, na inspiração deste texto. Na minha mente apenas ouço: Vai lá. Vai lá. Vai lá. Vai lá. Vai lá. Vai lá. Esta frase está a deixar-me mais maluco que a presença da figura. Preciso se escrever mais, preciso de saber mais sobre esta figura para escrever mais.
O meu corpo cede àquela ordem.
Vou ver mais de perto.